Filipe Zau | 27 de Abril, 2010 [publicado no Jornal de Angola]
Saunders, no seu livro intitulado “História Social dos Escravos e Libertos Negros em Portugal (1441-1555)”, dá-nos a conhecer que há fontes que comprovam, que, à época, já se realizavam “alguns casamentos inter-raciais, entre indivíduos com estatuto livre, se bem que os brancos e os negros encontrassem normalmente os seus cônjuges na mesma comunidade rácica”. Há documentos de artistas plásticos e o teor de algumas peças de autores clássicos portugueses de século XVI – a exemplo de Gil Vicente, de António Ribeiro Chiado e de Henrique da Mota –, que também comprovam tal facto. Nos registos paroquiais das localidades que concentravam mais escravos, podem ainda ser encontrados assentos de casamento entre escravos ou entre escravos e libertos, que foram reconhecidos pela Igreja Católica.
O reverendo inglês John Trusler, ao recolher depoimentos de viajantes, em 1747, (como Barreti Fielding e outros), redigiu: “Outro facto chocante para o estrangeiro, que anda pela cidade de Lisboa, é a quantidade de negros. Muitos desses pobres infelizes vêm de África, outros nascem em Portugal ou nas colónias ultramarinas. Não há navio chegado dessas partes do mundo que não traga alguns desses negros. E ao virem a Portugal é-lhes permitido casar não apenas entre eles, mas também com gente de outra cor. Esses cruzamentos (escreve Barretti) tornaram o país repleto dos mais diferentes exemplares de mostrengos humanos. Um branco e um negro geram um ‘mullato’ [sic]. O mulato une-se então a um negro ou a um branco, e com isso formam mais duas variantes chamadas mestiços. Estes mestiços de brancos, então, unem-se a mestiços de negros ou brancos, ou mulatos; e assim, são tantos os ramos em que se desdobram com tais cruzamentos, que se torna difícil distingui-los com designações exactas, embora sejam facilmente identificáveis no geral pelos seus tons de pele. A raça portuguesa de origem foi por tal forma degradada que ser um ‘Blanco’ [sic], isto é, um branco de verdade, tornou-se título honorífico: e assim, quando um português diz que é ‘Blanco’, não quer dizer que a sua pele o seja, mas apenas que se trata de um nobre ou de pessoa de família de certa importância”.
A informação do reverendo John Trusler confirma e completa a observação do viajante Udal, que, no fim da primeira metade do século XVIII, visitou Portugal e afirmou: “O facto de ter domínios nas duas Índias traz a Lisboa um tal número de amorenados, negros e mulatos que, quando um português deseja ressaltar a sua condição de nobre diz que é ‘Branco’.
No século XVIII, uma ideia perfeita do grau a que chegou essa mistura de “raças” na Península Ibérica, é fornecida por um outro inglês, o viajante Richard Twiss, que, em fins de 1772 e inícios de 1773, depois de visitar Portugal, deixou de Lisboa a informação de que um quinto dos habitantes era “composta de pretos, mulatos e de várias nuances entre o branco e o preto”. Twiss copiou em Málaga, em Espanha, 16 legendas explicativas de painéis, representando tipos de mestiços resultantes de cruzamentos e, entre os quais, constavam os seguintes: “mulato”, cruzamento de branco espanhol com negro; “morisco”, espanhol com mulata; “alvino”, morisco com espanhol; “lobo”, negro com índio; “sambaigo”, lobo com índio; “cambujo”, sambaigo com mulato; “albarrassado”, cambujo com mulato; “barzino”, albarrassado com mulato; negro de cabelo liso; barzino com mulato… Luis Ramos Tinhorão, na sua obra “Os Negros em Portugal – Uma Presença Silenciosa”, afirma que Richard Twiss acabou por incluir esta relação no seu livro “Travels through Portugal and Spain in 1772 and 1773”.
São factos como estes, que levam António Luís Ferronha, no seu texto “O Tropicalismo Luso ou a Maneira Africana de Estar em Portugal”, a afirmar que o marquês de Pombal, apesar da sua pele branqueada, descendia do arcediago Sebastião de Carvalho e de uma negra conhecida por Mãe Marta que, cinco gerações antes, na primeira metade do século XVII, deram início à sucessão dos Carvalhos, no lugar da Mata Escura, à época, apenas província da Beira. Quando Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, caiu em desgraça política, surgiu, em 1781, o soneto anónimo, reproduzido, em 1879, por Fortunato de Almeida, que diz o seguinte: “Torna, torna marquês à Mata Escura/ Solar do quinto avô, o arcediago,/ Que da mãe Marta, por seu negro afago/ Em preto fê cair tua ventura. (…)/ Foste tenente rei da nossa Atenas,/ Inspector do erário que bem pinga,/ Vice papas nas leis, que injusto ordenas./ Amigos, e que tal? Cheira a catinga?/ Pois é quem governou por nossas penas/ Um quinto neto da rainha Ginga”.
Ignorada que é, pela própria historiografia oficial, a contribuição dos negros na formação da sociedade portuguesa medieval, é, hoje, de se aceitar, que muitos auto-apelidados de brancos em Portugal, são, afinal, descendentes de negros e mestiços. Contudo, a verdade é que de todo desconhecem esse facto.
Século XVIII
O quinto neto da Rainha Ginga
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