Casa Bocage, Setúbal [3 Maio a 7 Junho]

Revelar a memória a partir do esquecimento

Bem-vindos à minha primeira exposição como autor, que é o primeiro passo de um ambicioso projecto visual sobre a Vida, tendo como cenário o século XVIII.

Ao contrário dos tempos que vivemos, que exigem rapidez e estão carregados de quantidades desmesuradas de imagens, este projecto demorou três anos a construir apenas uma.

E, como verão, é um exercício técnico que reflecte à primeira vista uma tentativa de aproximar a fotografia à pintura e ao desenho, em particular aos antigos pintores flamengos que ainda hoje são muito admirados pelas suas cores, bem como pelas suas composições inteligentes e brilhantes no uso da luz.

É, principalmente, uma reflexão surreal e filosófica sobre a vida, o racismo entranhado no subconsciente, a história de que não temos consciência, a máscara social e política, as emoções, o poder e o Estado, mas acima de tudo é sobre a Memória. Como foi esquecida ou apagada...

O ponto de partida desta aventura foi um texto do historiador angolano Filipe Zau, publicado no jornal de Angola em 27 de Abril de 2010. Mas também a polémica criada com o quadro “o último interrogatório do Marquês de Pombal” (1890-1891), de José Malhoa (inspirado num controverso trecho da História de Portugal de Pinheiro Chagas) e o qual um jornalista da época considerou uma ofensa à dignidade de um povo, pela maneira como o tema fora abordado. É que este quadro, pelas suas características, era economicamente improdutivo pois nunca poderia figurar num edifício do Estado e nenhum “particular de bom senso” alguma vez o compraria (Diário de Notícias, 1 de Abril de 1892).1

O processo fotográfico é cinematográfico, e foi construído em laboratório académico com actores de palco, cenários, adereços, caracterização, iluminação e equipamentos fotográficos muito sofisticados, pelo que envolveu uma equipa enorme de voluntários (amigos, colegas e professores de várias áreas da fotografia). Apesar das dificuldades em utilizar, principalmente por um novo autor desconhecido, os muitos espaços históricos mortos no nosso país, o palco da captação da imagem revelada nesta exposição foi o palácio de Mafra, demonstrando desta forma que ainda há vida no nosso Património.

Para finalizar, queria agradecer à Casa Bocage e ao Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro a cedência deste espaço expositivo, e em particular ao empenho de Bruno Ferro Gonçalves.

Fico muito agradecido com a vossa presença e é meu desejo que desfrutem!

Muito Obrigado.

JRicardo

1 de Maio de 2014

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Muito me apraz que a Casa Bocage tenha sido o lugar escolhido por JRicardo Rodrigues para a sua primeira exposição: a primeira série do projecto 'Séc. XVIII'. Esta escolha não foi inocente. Sendo um edifício do Séc. XVIII, esta casa evoca a memória de outra importantíssima figura do Século das Luzes, Bocage. Por outro lado, esta casa 'iluminada' é, também, um lugar de Fotografia e da sua história, por acolher, no piso superior, o magnífico espólio fotográfico de Américo Ribeiro, que espelha parte da história da cidade de Setúbal do Séc. XX, as infindáveis estórias das suas gentes, assim como o desenrolar da técnica fotográfica.


Com 'Séc. XVIII - Revelar a Memória a partir do Esquecimento', JRicardo Rodrigues proporciona uma viagem pela história da arte, evocando inúmeros autores, as tendências da época na Pintura, reflectindo sobre a própria Fotografia e até mesmo o Cinema, mas, sobretudo, reporta-nos para o tempo em que a monarquia absolutista se misturava com o racionalismo iluminista, no qual Sebastião de Carvalho e Melo se destacou como incontornável figura de Estado do Reino português. Mais, muito mais… o autor persegue, por pistas que o foram conduzindo e que aqui nos revela, as origens, quase sempre silenciadas, de Marquês de Pombal, representado fotograficamente em cena, de forma imponente, entre as figuras do Espanto e do Medo.


Com este exercício, reflexivo e visual, o autor evoca a Memória e o Esquecimento, através da Encenação e Imaginação, trazendo à luz o papel da Arte, em especial o do medium fotográfico, enquanto dispositivo capaz de recuperar o vazio da História, aquele mesmo de que nem temos consciência, e torná-lo presente, visível, contemplativo, belo e, sobretudo, rastilho para o pensamento crítico, comunicação, partilha e debate entre os espectadores desta ‘cena’, da qual acabam por também fazer parte.


Congratulo, pois, o autor, por terem sido claramente atingidos os objectivos desta primeira série do Séc. XVIII, ao mesmo tempo em que lhe expresso gratidão por esta partilha.


Ao leitor, volto a convidá-lo para visitar a Casa Bocage onde se encontra até ao dia 7 de Junho a exposição que revela o “quinto neto da rainha Ginga”.


Bruno Ferro

(Casa Bocage e Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro)


Casa Bocage e Arquivo Fotográfico Américo Ribeiro

A Casa Bocage, lugar de acolhimento desta exposição, alberga no primeiro andar o mais importante espólio fotográfico da cidade de Setúbal do Séc. XX: a Colecção Améull érico Ribeiro. Esta colecção conta a história de Setúbal, num período de mais de sessenta anos do séc. XX (1920 a 1980), através das imagens de Américo Ribeiro (1906 – 1992),  considerado na sua época o “fotógrafo oficial de Setúbal”. As alterações que a cidade foi sofrendo, os habitantes e o seu quotidiano, o trabalho, como a indústria conserveira, a ostreicultura ou a pesca, as festas tradicionais e religiosas, os clubes desportivos, os grandes acontecimentos sociais e oficiais, encontram nos negativos de Américo Ribeiro um testemunho, hoje indispensável para a construção da memória local.

O espólio divide-se em dois grupos distintos: o primeiro é formado por  142540 espécimes fotográficos, caracterizados por diferentes tipologias. Neste grupo podem encontrar-se negativos e diapositivos de gelatina em vidro a preto e branco, negativos e diapositivos em película de acetato de celulose a preto e branco e a cor, negativos em película de nitrato de celulose a preto e branco, provas em papel de revelação a preto e branco e a cor e provas fotomecânicas; o segundo é constituído por uma colecção de objectos associados à prática da fotografia, composta por um conjunto de câmaras fotográficas e equipamentos e materiais do estúdio e do laboratório do autor. Estes objectos fazem parte de um período específico da própria história da fotografia e são testemunhos concretos da evolução técnica da arte fotográfica no Séc. XX.

Desde que adquiriu a colecção fotográfica, a Câmara Municipal de Setúbal pretendeu constituir um arquivo de imagens, com o objectivo  de servir as necessidades dos estudantes, investigadores, apreciadores de fotografia, amantes da cidade e até dos mais saudosistas, enfim, de toda a população em geral, indo de encontro com a finalidade que o autor lhe tinha concedido.

Assim, a conservação da colecção fotográfica, tendo como propósito torná-la acessível a todos, na sua região de origem, onde as imagens que a constituem adquirem especial significado e valor, ao mesmo tempo em que se protege e preserva as espécies fotográficas originais, é o principal objectivo do arquivo fotográfico Américo Ribeiro, que pretende ser um dos principais pilares na criação do conhecimento da história local.


Rua Edmond Bartissol, n.º 12, Setúbal. Telf.: 265 229 255

Gravura original do Século XVIII, onde é possível observar os traços africanos do Marquês de Pombal.


Esta edição está em exposição na Casa Bocage em Setúbal.


Rede Angola

Um Marquês de Pombal mestiço

Artista luso-angolano reencenou figura histórica portuguesa para falar de racismo.


Por Susana Moreira Marques | www.redeangola.info

Uma figura está de boca aberta, em posição de espanto e outra, com medo; no centro, o Marquês de Pombal, com a sua inconfundível cabeleira, estende a mão num sinal de confiança, talvez até de futuro. Uma imagem é para ser olhada várias vezes, pelo menos uma imagem no seu sentido mais nobre de valer mil palavras e, olhando com mais atenção, percebemos que o rosto branco do Marquês de Pombal, com a pesada maquilhagem de época, é afinal um rosto negro.

Estamos no Palácio de Mafra no século XXI e o Marquês de Pombal, figura incontornável do século XVIII, está a ser representado por Thiago Justino, actor brasileiro negro. O artista J Ricardo Rodrigues demorou três anos para pensar, planear e construir esta fotografia de modo a cobrir três séculos de perguntas sobre a sociedade portuguesa e o racismo.

A exposição Século XVIII – Revelar a Memória a Partir do Esquecimento esteve recentemente na Casa Bocage, em Setúbal, foi a primeira exposição de J Ricardo Rodrigues e questiona a imagem do intrigante e polémico Marquês de Pombal. Isto é só o princípio: Ricardo Rodrigues, que nasceu em Angola em 1964 e veio para Portugal ainda antes da independência, quer, através do seu trabalho, recriar uma imagem de Lisboa que quase nunca vemos: a visão de uma cidade que nunca foi só branca e que foi sempre um lugar onde se reflectia quer a beleza quer o grotesco da vida das colónias.

Invisibilidade

J Ricardo Rodrigues tem um escritório no Príncipe Real, bem no centro de Lisboa, e é daí que ele vai tecendo os fios entre presente e passado. Agora está a fazer pesquisa sobre o bairro Mocambo, que seria uma espécie de quilombo na Lisboa do século XVIII.

Algumas dessas ligações no tempo têm quebras, descontinuidades, como se a história fosse tendo pequenas amnésias. “Quando leio alguns relatos sobre a quantidade de pessoas que estariam em Portugal vindas de outros territórios, não só escravos mas também negreiros e burgueses, e que alguns deles até foram feitos nobres, pergunto-me o que é que aconteceu a esta gente? E porque é que não temos referências visuais destas personagens?”

J Ricardo Rodrigues começou a pensar neste trabalho depois de ter lido um texto do historiador angolano Filipe Zau, publicado no Jornal de Angola, em que ele citava relatos de viajantes do século XVIII que teriam passado por Lisboa: “Outro facto chocante para o estrangeiro, que anda pela cidade de Lisboa, é a quantidade de negros”, escreveu um reverendo inglês em 1747. “O facto de ter domínios das duas Índias traz a Lisboa um tal número de amorenados, negros e mulatos que, quando um português deseja ressaltar a sua condição de nobre diz que é ‘Branco’”, escreveu ainda outro viajante, também citado por Zau.

De certa forma, falar sobre essa invisibilidade é falar sobre outra que continua: “Temos hoje uma população de origem africana que não está representada pelo poder político”, diz J Ricardo Rodrigues.

Trata-se de uma discussão não só sobre racismo mas também sobre identidade – ou sobre uma ideia de lusofonia que, ao longo dos anos, tem prometido mais do que cumprido.

Em 2014, J Ricardo Rodrigues está afinal a falar de algo que lhe é muito próximo. 40 anos antes, com o 25 de Abril, as colónias tornaram-se independentes e, embora ainda fosse pequeno, foi uma transformação que viu acontecer e que o marcou. Era uma transformação que tinha que acontecer e era surpreendente que tivesse levado tanto tempo para acontecer. Foi no tempo do Marquês de Pombal que os portugueses saíram de Mazagão, pondo fim à presença portuguesa no Norte de África.

Neto da Rainha Ginga

Primeiro-ministro do Rei D. José I, grande impulsionador da reconstrução de Lisboa (com o engenheiro Eugénio dos Santos e o arquitecto Carlos Mardel) depois da completa destruição da cidade com o grande terramoto de 1755, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, mudou o século XVIII e foi percursor de ideias iluministas em Portugal. Diminuiu a influência dos Jesuítas, forçando maior separação entre a Igreja e o Estado e por isso foi mais odiado do que amado. E, em 1761, foi o cérebro por trás da ordem do Rei D. José para abolir a escravatura dentro do território português metropolitano, tornando Portugal um país pioneiro do abolicionismo.

Apesar de ser uma figura fundamental da história portuguesa, o Marquês de Pombal é difícil de descrever, ainda mais difícil de caracterizar com certeza. “Sobre o Marquês de Pombal existe muito fumo, uma neblina. Sobre o Marquês de Pombal foi dito isto e o seu contrário. Tanto fazem dele um ditador como um democrata, percursor da modernidade. A sua figura tornou-se um paradoxo”, explica o historiador português José Eduardo Franco, director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Universidade de Lisboa.

Para José Eduardo Franco, é possível que se venha a comprovar que o Marquês de Pombal tinha origens africanas, como sugeriram alguns historiadores e como propõe a visão artística de J Ricardo Rodrigues. Aconteceu com o Padre António Vieira – e depois de ter ficado provado que Vieira era mestiço, olhou-se de outra maneira para todo o seu percurso no Brasil e as suas ideias de um grandioso quinto império, a que Portugal estaria predestinado para espalhar a palavra de Deus por todo o mundo.

“É um facto histórico que a escravatura foi proibida em Portugal e que o Marquês de Pombal acabou ainda com a cidadania de segunda, promovendo a igualdade total, independentemente de raça ou de religião. Agora se esse trabalho dele teve a ver com ele ter raízes africanas ou se foi apenas por ideologia, não sabemos”, diz José Eduardo Franco.

Em 1777, depois da morte de D. José I, o Marquês de Pombal foi demitido das suas funções no Estado e mais tarde acusado de abuso de poder e corrupção. Tinha já 80 anos quando foi condenado ao desterro e se afastou de Lisboa. Morreu pouco tempo depois, no seu palácio de Pombal, em 1782.


Nesses últimos anos, percebeu-se quantos inimigos tinha feito e o Marquês tornou-se uma figura caída em desgraça, maldita. J Ricardo Rodrigues encontrou, dessa época, um verso que circulava pela capital portuguesa, “Torna, torna marquês à Mata Escura”:

Solar do quinto avô, o arcediago,

Que da mãe Marta, por seu negro afago

Em preto fê cair tua ventura. (…)

Foste tenente rei da nossa Atenas,

Inspector do erário que bem pinga,

Vice papas nas leis, que injusto ordenas.

Amigos, e que tal? Cheira a catinga?

Pois é quem governou por nossas penas

Um quinto neto da rainha Ginga

Neste verso sugeria-se que o Marquês de Pombal era descendente de africanos – fosse de uma escrava “mãe Marta” ou de uma “rainha Ginga”, era “preto”. Mas, a esta distância, é difícil dizer se o “insulto” seria porque o Marquês era de facto mulato ou se era simplesmente porque ele tinha abolido a escravatura em Portugal, uma medida tão pioneira quanto incompreendida e que o tornava, na opinião pública, próximo dos “pretos”.

Para José Eduardo Franco, a descoberta de que o Marquês de Pombal era descendente de africanos, como no caso do Padre António Vieira, à luz da sociedade de hoje, num contexto de pluralismo, só viria a valorizar o Marquês de Pombal.

J Ricardo Rodrigues tem dúvidas de que a sociedade portuguesa queira repensar o Marquês de Pombal dessa forma, mas mais do que dar respostas ou apresentar uma verdade para substituir outra, quer levantar o véu sobre questões que parecemos esquecer com demasiada frequência. Falamos de lusofonia a toda a hora para tentar exprimir uma relação antiga entre continentes, mas raramente procuramos realmente ver quantos séculos nos juntam e separam, quantas imagens, e como numa mesma cidade coexistem tantas maneiras de viver a História.

http://www.jricardo.eu/projectos/secxviii/sebastiao/primeira_exposicao.html

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