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‘Sekulo’ [2017]
Projecto 'revelar a memória a partir do esquecimento'.
Não me recordo já
Quem me contou a história,
Se o vento,
Se o mar,
Se o meu avô.
Sei apenas que não pode ser lenda,
Tem que ser verdade.
Numa praia qualquer,
Que importa se África ou da América,
Um velho negro,
Todos os dias,
Recolhia respeitosamente
Os pedaços de madeira
Que o mar trazia.
Abria uma cova para cada um,
Rezava na sua língua natal
E, em seguida, enterrava o madeiro.
Riam os mais jovens
Do procedimento do velho.
Que era louco, diziam.
Indiferente aos dichotes,
O velho repetia apenas
“O tempo responderá por mim”.
E foi o tempo que me respondeu.
Hoje, adulto, já não me pergunto
Se o velho enterrava
Restos duma caravela
Carregada de ouro e especiarias
Ou apenas pedaços de árvores
Arrastados ao mar por um temporal.
Talvez nem fosse madeira
E, sim, uma onda de gritos,
Uma tábua de sangue,
Um membro decepado,
Um mastro de morte,
Um ruído de grilhetas,
Um clamor de revolta,
Uma raiva impotente,
Um gemido perpétuo,
Uma onda de gritos,
Uma violação sem tamanho,
Um olhar de indiferença.
Talvez, até, e porque não,
Um corpo negro
Dos milhentos
Homens, mulheres, crianças,
Embarcados à força
Nos horrendos navios negreiros.
Não pode ser lenda.
Tem que ser verdade.


UM VELHO NA PRAIA, de Cuca (Rui Manuel),
edição PERFIL CRIATIVO - EDIÇÕES, 2017, Colecção: Poesia no Bolso